Homenagear Nise da Silveira e Virgínia Leone Bicudo é reconhecer a coragem e a inovação dessas mulheres na saúde mental e na psicanálise, respectivamente.
Nise destacou-se pela humanização do tratamento psiquiátrico, enquanto Virgínia, primeira psicanalista mulher e negra na América Latina, abordou as questões das relações raciais e contribuiu para a formação de analistas.
Suas trajetórias pioneiras deixaram um legado valioso – o de Nise, evidenciado pelo Museu de Imagens do Inconsciente, e o de Virgínia, pelo impacto na psicanálise e nas questões das relações raciais no Brasil.
A prática clínica marcante de Nise da Silveira foi sua luta por um tratamento humanizado a pacientes psiquiátricos. Através da arte, ela permitiu a expressão do inconsciente, promoveu comunicação e contato humano, e proporcionou alívio ao sofrimento dos doentes mentais nos hospitais psiquiátricos. Sua abordagem pioneira na intersecção entre psiquiatria e arte teve impacto significativo no Brasil e no mundo, e ela se destacou como mulher politizada, combativa e ligada às artes.
A ousadia de Nise da Silveira resultou na fundação do Museu de Imagens do Inconsciente, na cidade do Rio de Janeiro, com um acervo impressionante de 350 mil obras de modelagem e pintura, criadas por pacientes internados por esquizofrenia.
Aos colegas de outros países da América Latina e de diferentes estados brasileiros, recomendamos uma visita a esse museu. Vocês terão uma experiência surpreendente, mergulhando na expressividade única dessas criações artísticas ligadas ao universo do inconsciente.
Virgínia Leone Bicudo, afrodescendente, alcançou feitos significativos ao tornar-se socióloga e a primeira psicanalista mulher e negra a deitar-se num divã em toda a América Latina. Sua trajetória é notável, especialmente se considerarmos os desafios enfrentados por uma mulher negra na sociedade brasileira da época.
Desempenhou um papel crucial ao realizar um dos primeiros trabalhos acadêmicos sobre racismo no Brasil. Sua vivência e sua consciência do preconceito racial a levaram a explorar o tema das relações raciais, utilizando a sociologia, a psicanálise e áreas afins. Sua dissertação, intitulada Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, fez história como a primeira dissertação de pós-graduação em ciências sociais no Brasil. Ao tocar na ferida de sua própria trajetória, Virgínia propôs uma pesquisa de campo que escutasse as dores desses brasileiros, conforme destacado por nossa colega Dora Tognolli.
Os estudos de Virgínia Leone Bicudo revelam que as diferentes formas de branqueamento estavam diretamente ligadas às oportunidades de ascensão social para negros no Brasil. A semelhança entre o comportamento de Virgínia e o da elite branca era vista como sinal de ascensão, conforme observado nos meios psicanalíticos, onde a percebiam “embranquecida” e ascendendo na vida institucional psicanalítica paulista. Esse fenômeno pode ter sido um recurso necessário na época, ou até mesmo indicar uma impossibilidade de ser reconhecida como negra pela comunidade psicanalítica de então. De qualquer modo, desigualdade social e racismo são fatores empobrecedores para o país e as sociedades.
Sua trajetória mostra quantos talentos de classes sociais menos favorecidas, originários de famílias imigrantes ou provenientes da escravização, podem e continuam a ser perdidos. Ela superou obstáculos, estudou em Londres, dirigiu o instituto de formação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) por treze anos, fundou o Jornal de Psicanálise (periódico do instituto de formação dessa sociedade), refundou a Revista Brasileira de Psicanálise, hoje com mais de cinquenta anos de atividade, e contribuiu significativamente ao mudar-se para Brasília em 1967, iniciando o processo de fundação da Sociedade de Psicanálise de Brasília e criando a revista Alter.
A partir de 1954, Virgínia Leone Bicudo organizou uma série de programas, abordando temas como inconsciente, agressividade, inveja, ciúme, culpa, fantasia, amor e ódio, sob a forma de radioteatro, próxima das radionovelas e folhetins populares na época. O programa Nosso Mundo Mental utilizou habilmente esse recurso, obtendo ótimos resultados. No ano seguinte, em 1955, a autora começou a publicá-lo como textos no jornal Folha da Manhã, transformando-o depois em livro com o mesmo título.
É verdadeiramente notável a ousadia de Virgínia Leone Bicudo em abordar nosso mundo mental no rádio, algo comparável à coragem de Winnicott para falar sobre maternidade na BBC durante e após a Segunda Guerra Mundial. Winnicott apresentou cerca de cinquenta programas intitulados Happy Children, entre os anos de 1943 e 1962, direcionados ao público em geral. Ambos contribuíram significativamente para levar temas psicanalíticos ao público por meio do rádio.
Virgínia Leone Bicudo deixou uma contribuição crucial ao trabalhar na introdução à análise de crianças na formação de analistas no Instituto Durval Marcondes da SBPSP, em parceria com Lygia Alcântara do Amaral. Como pioneira da psicanálise em São Paulo e no Brasil, ela foi de fato uma desbravadora, destacando-se por suas ideias arrojadas e inovadoras sobre a função social do psicanalista, consolidando seu papel fundamental na evolução da psicanálise.
É preciso destacar que, ao trabalhar institucionalmente e alcançar uma posição de temperança com nossa história, passamos a valorizar mais nossas pioneiras. Isso nos permite ter um verdadeiro entendimento do trabalho e da dedicação dessas mulheres, as quais possibilitaram que, entre erros e acertos, chegássemos aos dias atuais. Cabe reconhecer e compreender em toda a sua complexidade o legado deixado.
Um abraço,
Marina Massi