VIRGÍNIA LEONE BICUDO (1910-2003)

Virgínia Leone Bicudo, a institucionalização e difusão da psicanálise no Brasil: A Sociedade de Psicanálise de Brasília

A trajetória de Virginia Leone Bicudo é a biografia de uma mulher incomum, dotada de profunda sensibilidade para compreender a complexidade da condição humana e suas aflições. Sua vida foi marcada por uma capacidade singular e intensa de transformar experiências pessoais em atividades, ações e na geração de conhecimento

Além de exercer o ofício de psicanalista, foi educadora sanitária, visitadora psiquiatra, socióloga, professora universitária, divulgadora científica e protagonista de diversas iniciativas no plano da institucionalização, da divulgação e da interiorização da psicanálise no Brasil. Uma carreira profissional com vários vértices em que quase todos foi pioneira. Tornou-se socióloga quando a profissão estava se institucionalizando. É psicanalista quando o ofício está se iniciando no Brasil. Uma das primeiras, talvez a primeira intelectual negra do Brasil na primeira metade do século XX.

Na sociologia e na psicanálise, estudou as relações do homem com a cultura, as relações interpessoais e interpsíquicas, e viveu e estudou, como poucos, parcela das singularidades da constituição da sociedade brasileira: os não silenciosos preconceitos de classe, gênero, de cor e de raça.

Virgínia nasceu na cidade de São Paulo, em 1910, e faleceu, na mesma cidade, em 2003.

Um olhar para o nome de Virgínia Leone Bicudo observamos que representa a singularidade da convergência de diferentes origens, culturas e vivências, tecendo uma narrativa que transcende gerações e reflete a complexa formação da identidade brasileira. Filha de Giovanna Leone, imigrante italiana, e Teófilo Júlio Bicudo, filho de escrava e criado por Bento Bicudo, produtor de café, liderança política regional e um dos fundadores do jornal O Estado de São Paulo. Os nomes, de certa maneira, estão alinhados e dispostos em uma linha evolutiva civilizatória: da escrava Virginia ao cidadão Bicudo, tendo como elo o imigrante Leone.

A socióloga, a psicanalista.

A história do movimento psicanalítico brasileiro pode ser dividida em três grandes períodos. O primeiro inicia-se nas primeiras décadas do século passado, com a disseminação e o estudo dos textos de Freud. Grupos de curta duração, compostos por psiquiatras e entusiastas da psicanálise, surgiram em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. (Eizerik, 2018).

Nesse período, em São Paulo, Durval Marcondes, com outros médicos e intelectuais, fundou em 1927 a Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP), em 1928, a Revista Brasileira de Psychanalyse (RBP) que teve apenas um número. Iniciativas efémeras.

Nas primeiras décadas do século XX, o Brasil estava em ebulição. Brasileiros trocavam tiros e ideias no Rio de Janeiro, a capital do Brasil de então, no Norte e no Nordeste, em São Paulo – o foco de irradiação industrial – e no Rio Grande do Sul. Houve rebeliões tenentistas em 1922, 1924 e 1927, culminando no processo de levante contra as velhas oligarquias agrário-exportadoras dos “barões do café” da Revolução de 1930.

Esse período marca o início do processo de urbanização e industrialização brasileiro. Eclodiu algo que estava latente induzindo a desorganização dos poderes instituídos e a criação de uma nova articulação das forças políticas regionais; iniciou-se vigoroso êxodo rural com a intensificação do fluxo imigratório para o Brasil; a ascensão sociopolítica das classes médias; a metamorfose do Estado brasileiro; e a profunda mutação no quadro de valores e comportamentos vigentes.

Esse contexto era extremamente fértil para o conhecimento e a difusão das ideias freudianas como vetor de possível compreensão dos movimentos sobrepostos em curso. O moderno em marcha! O grande fato foi A Semana de Arte Moderna, realizada em 1922. Uma experiência estética que marca e sintetiza as intensas transformações, em curso, na capital paulista e no Brasil. Não por acaso, meses depois, no Rio de Janeiro, então capital do Brasil, ocorreu a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, iniciando as revoltas tenentistas no Brasil que vocalizavam a ascensão socio política da classe média e a postulação de reformas estruturais na política brasileira.

As guerras do século XX, a ascensão do nazismo e as perseguições raciais e políticas induziram a imigração de psicanalistas europeus, principalmente, de Viena, Berlin e Budapeste para o continente americano, de língua inglesa, e uma pequena parcela para a América do Sul. Ademais, vários psicanalistas sul-americanos que estavam na Europa retornaram a seus países de origem. (Pieczanski e Pieczanski, 2017)

Em 1920, com a criação do Instituto de Psicanálise de Berlim, filiado à IPA, e a adoção do modelo formação tripartite (análise pessoal, supervisão e seminários teóricos e clínicos) – concebido por Max Eitingon – consolida-se o tripé como o primeiro protocolo de formação em psicanálise que se irá espraiar por vários países e diferentes grupos psicanalíticos além da comunidade IPA. (Frausino, 2022)

Em 1936, com a chegada, na cidade de São Paulo, da psicanalista alemã Adheleid Lucy Koch, formada pelo prestigiado Berliner Psychoanalytische Institut (BIP) da Deutsche Psychoanalytische Gesellschaft (DPG), delineia o início da segunda fase do movimento brasileiro psicanalítico, com a consolidação do sistema de formação nos moldes da IPA, no Brasil, com a presença e residência de analistas com funções didáticas, principalmente, em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre.

A terceira fase é definida pelo reconhecimento pela IPA da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), em 1951, da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), em 1955, da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SPRJ), em 1959 e da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA), em 1963, as principais referências da psicanálise brasileira.

Em 1938, Bicudo foi a única mulher e negra na turma de oito formandos do curso de sociologia na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP). A primeira socióloga, a primeira socióloga negra brasileira! Em 1945, defendeu a dissertação de mestrado Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo, na ELSP. (Bicudo, 2010). Os resultados da pesquisa questionavam visões vigentes e hegemônicas que postulavam a existência de uma harmonia racial no Brasil ou, ainda, que a discriminação racial era resultado de uma questão de classe social e não de cor.

Vale registrar que Virgínia assumiu com Durval Marcondes à docência de psicanálise na ELSP, em 1940, no curso Saúde Mental e Psicanálise, ainda cursando o programa de mestrado da instituição.

Virgnia teceu ampla pesquisa acerca das relações sociais na cidade de São Paulo, por meio da interseção entre a sociologia, a antropologia e a psicologia social, que destaca a mobilidade social e o preconceito de cor como traços de relevo na dinâmica da cidade. O trabalho que é percursor do conceito de interseccionalidade como perspectiva analítica, dado o fato de sua dissertação sugerir que as dinâmicas raciais no Brasil estarem articuladas às questões de gênero e classe.

Um estudo que destaca que o preconceito de cor impera diante os preconceitos de classe e de raça no funcionamento da sociedade brasileira urbana contemporânea. Mais uma ação pioneira de Virginia com a sua dissertação. Até a primeira metade do século XX, os trabalhos acadêmicos nas Ciências Sociais, no Brasil, eram basicamente provenientes de homens, alguns brancos e negros, mas nenhum de uma mulher negra à exceção da dissertação de Virginia.

O trabalho é um marco epistemológico no estudo e na compreensão do racismo brasileiro, dos matizes da constituição da sociedade brasileira e da subjetividade dos brasileiros. No entanto, a dissertação de 1945 só obterá o seu devido reconhecimento décadas depois.

Em 1937, Bicudo inicia sua análise com a psicanalista Adheleid Lucy Koch. Assim, Bicudo, com Durval Marcondes, integra o grupo que dará início à trajetória da edificação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).

Em uma fotografia virtual com os/as fundadores da Sociedade de Psicanálise de São Paulo destaca-se que a primeira pessoa a deitar em um divã no Brasil, e possivelmente na América Latina, foi uma mulher negra, não médica, filha de pai negro e imigrante italiana e professora da rede pública estadual. Uma pessoa que se interessou pela sociologia e depois pela psicanálise como caminhos para ampliar o seu entendimento acerca das questões raciais e da sua própria vida.

Eu me interessei muito cedo por esse lado social. Não foi por acaso que procurei psicanálise e sociologia. Vejam bem o que fiz: eu fui buscar defesas científicas para o íntimo, o psíquico, para conciliar a pessoa de dentro com a de fora. Fui procurar na sociologia a explicação para questões de status social. E na psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição. Essa é a minha história. [...] Para não ser rejeitada, tirava nota boa na escola. Desde muito cedo, desenvolvi aptidões para evitar a rejeição. Você precisa tirar nota boa, ter bom comportamento e boa aplicação, para evitar ser prejudicada e dominada pela expectativa de rejeição, diziam meus pais. Por que essa expectativa? Por causa da cor da pele. Só pode ter sido por isso. Eu não tive na minha experiência outro motivo. (Mautner, 2000)

Em 2024, após oito décadas do registro dessa cena, a psicanálise está se espraiando e se interiorizando pelo Brasil. A presença das mulheres é uma marca nas sociedades e institutos e nas direções das instituições brasileiras e latino-americanas. A formação psicanalítica de leigos (não médicos e não psicólogos), marca do Instituto de Psicanálise da Sociedade de Brasília e outros, passou a ser discutida pela comunidade psicanalítica e aceita por outras sociedades no Brasil e na América Latina.

No entanto, a questão racial é algo que marca nossas instituições com a baixa presença de negros. Em 2020, Wânia Cidade, atual presidente da Fepal, e Ignácio Paim reafirmam enfaticamente esse traço das nossas sociedades e dos nossos institutos:

Somos o país que tem a maior população negra fora do continente africano, 56% da população brasileira – realidade conhecida e desconhecida. Contudo, isso não se reflete em nossas instituições. Seria a psicanálise uma prática de branco para brancos? O racismo segue fazendo história em nossas casas psicanalíticas? Acreditamos que sim, seja por omissão, conivência ou indiferença [...]. Não esqueçamos que o racismo envolve a questão de delimitar territórios, de marcar fronteiras, que visam fazer do conterrâneo negro e negra um estrangeiro. Até quando? (Paim Filho e Cidade, 2020)

Bicudo também se dedicou a ampliação da presença da psicanálise no ambiente cultural e socioeconômico. Na década de 1950, liderou um programa de rádio em São Paulo, escreveu uma série de artigos semanais em jornal de grande circulação e editou o livro Nosso mundo mental (1956), que reúne parte dos artigos publicados no periódico.

Entre 1955 e 1960, já analista didata, viveu em Londres, onde fez nova análise, participou de atividades na Tavistock Clinic e no London Institute of Psychoanalysis, teve estreito contato com o grupo kleiniano, com Bion, Melanie Klein, ecos das Controvérsias e das ideias e obras do Grupo de Bloomsbury.

Após retornar de Londres, Virgínia Bicudo deu início a um novo capítulo em sua vida, dedicando-se a projetos de grande impacto no cenário psicanalítico paulista e brasileiro. Gradualmente, assumiu posição de destaque na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e no movimento psicanalítico brasileiro.

Foi uma das introdutoras das ideias kleinianas e das obras de W.R. Bion na SBPSP e uma das pioneiras da psicanálise de crianças no Brasil, introduzindo essa especialidade no Instituto desta Sociedade. Virginia tinha uma larga experiência nessa área, além da experiência londrina, foi visitadora sanitária e educadora sanitária.

Incentivou o (re)lançamento da Revista Brasileira de Psicanálise, em 1967, com o intuito de divulgar trabalhos dos psicanalistas brasileiros e o lançamento do Jornal de Psicanálise, em 1966, com o objetivo de divulgar os trabalhos dos analistas em formação e analistas do Instituto da SBPSP.

Ao longo do período que esteve à frente do Instituto da SBPSP, 14 anos, difundiu o modelo de formação psicanalítica londrina, de inspiração kleiniana, que, até então, estava centralizado em Adheleid Koch, em sintonia com o Instituto de Psicanálise de Berlim, com o predomínio do estudo das obras de Freud. O que de forma indireta influenciou a formação de várias gerações de psicanalistas brasileiros pela difusão do modelo do Instituto da SBPSP para outros Institutos brasileiros.

Bicudo e a Sociedade de Psicanálise de Brasília

A fundação da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPBsb) foi outro dos seus legados institucionais. Constituiu-se em um vetor da interiorização e difusão da psicanálise no Brasil. Um país de dimensões continentais em que a psicanálise ficou historicamente concentrada em três centros: Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, mas que atualmente está presente em outras localidades do interior e do país.

As ideias da possível fundação da SPBsb originam-se no período londrino de Bicudo, no qual acompanhou a construção de Brasília. Apesar da distância, a construção da cidade a instigava. Como afirma, em entrevista, em 1989:

[Quando] voltei ao [Brasil] na primeira semana fui ver Brasília. Vi aquele horizonte aberto, naquela esplanada e pensei “...eu quero vir para Brasília algum dia.” [...] Mas quis primeiro trazer para São Paulo o que aprendi em Londres. [...] O que acontecia em Brasília era uma migração de gente: os candangos, o pessoal do governo, gente do estrangeiro...Eu pensava “...está havendo um verdadeiro melting pot cultural e a Psicanálise será muito importante nesta cidade. [...] Pensei em levar a Psicanálise à capital do país e acho que foi acertado. (Bicudo, 1989)

Em 1970, Bicudo está no Distrito Federal e inicia a concretização do projeto de levar a psicanálise para “aquele horizonte aberto” e a primeira turma de formação psicanalítica que dará origem à futura Sociedade de Psicanálise. As preocupações com a divulgação da psicanálise continuaram em Brasília, criou a Alter, o primeiro número foi publicado em outubro de 1970 e perdura até os dias de hoje, como veículo da divulgação da produção dos membros do Instituto, da SPBsb e da comunidade psicanalítica brasileira.

Ao longo de mais de uma década, Virgínia Bicudo se dividiu entre São Paulo e Brasília e, na companhia de outros psicanalistas paulistas, junto com colegas de Brasília, construiu a Sede-Brasília do Instituto de Psicanálise da SBPSP, embrião da futura Sociedade. A condição de Sociedade Componente da IPA ocorreu em 2004 no Congresso de Nova Orleans.

Virginia trabalhou em Brasília até 1984.

Na trajetória de constituição desse novo núcleo de psicanálise distante da sede da SBPSP, Bicudo inovou institucionalmente no funcionamento das entidades psicanalistas. A experiência do analista didata deslocar-se da cidade do seu instituto a localidade dos seus analisandos, para a realização das respectivas análises didáticas, e a instituição da análise didática condensada foram novos dispositivos de formação criados por Virginia Bicudo. (Castro, 2017).

Por Carlos Cesar Marques Frausino
Membro da Sociedade de Psicanálise Brasília (SPBsb), Professor do Instituto de Psicanálise Virginia Leone Bicudo da SPBsb, Mestre pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Diretor da Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi) (2021-2022), Editor da Revista Alter da Sociedade de Psicanálise de Brasília (2013 a 2017). carlosfrausino@gmail.com

Referência bibliográficas.

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Mautner, A.V. (2000) Fui buscar defesas para o íntimo. Folha de São Paulo, São Paulo, Folha Ilustrada, p. 6, 2000. Disponível em <http://acervo.folha.com.br/fsp/2000/10/06/21>. Acesso em: março de 2024.

Paim Filho,I.A.; Cidade, W.M. C. F (2020) Podem negros e negras frequentarem os institutos de psicanálise? Observatório Psicanalítico. Febrapsi, 184, 28/07/2020, 1-2 [Recuperado em 1 de abril de 2024 de https://febrapsi.org/publicacoes/observatorio/observatorio-psicanalitico-1842020/

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